Era um dia bonito demais para tanta tristeza.
Mas ela chegou furiosa. Indomável.
O céu estava limpo, tingido de azul turquesa, como se tivesse sido recém pintado para celebrar alguma data esquecida. Como sempre em nossa região.
A brisa do nordeste soprava gentil, desfiando perfumes de flores recém-abertas na praça, e mesmo assim, ele não via. Não sentia.
Sentado sob a sombra aconchegante de uma mangueira, um homem — cuja solidão parecia fazer parte da paisagem — apertava com a mão esquerda o bolso da calça.
Lá dentro, o seu mundo: um punhado de fumo, papéis de seda amarrotados, um isqueiro velho. Seu verdadeiro tesouro. Seu único tesouro.
No banco de pedra, seus olhos perdiam-se na fumaça que saía da boca. Do nariz, até dos olhos.
Era ali que ele via arte, poesia, sentido. Os espirais cinzentas dançavam diante do rosto como se fossem uma companhia leal, talvez a única que lhe restara.
Ele as observava com um certo orgulho, como quem contempla uma obra-prima feita com o sopro da própria alma.
As pessoas passavam. Algumas o cumprimentavam. Sabiam seu nome. Ele as ignorava, como se fossem personagens de um sonho do qual não queria acordar. Já estivera desperto demais por tempo demais. Agora, preferia esse torpor que a fumaça lhe oferecia — constante, previsível, fiel.
Restos de pão, garrafas vazias e uma sacola plástica aberta ao lado denunciavam os excessos. Comera demais. Bebido demais. Como sempre. Mas da fumaça — ah, da fumaça ele nunca se saciava.
Era a sua vida. Seu oxigênio.
Seu coração, porém, discordava. Batia acelerado, ofegante, tentando compensar os pulmões envenenados. Cada respiração parecia uma luta entre o desejo de viver e a escolha de morrer lentamente. O corpo, exausto, dava sinais: espirros, muco escuro, tosses carregadas de um fim anunciado.
Mesmo assim, ele continuava ali. Firme. Fiel à fumaça.
Em um raro gesto, levou os olhos às placas cravadas no chão da praça. Duas setas, dois caminhos: bem ou mal. Sorriu, sem humor.
Nenhum dos dois lhe parecia convidativo. Ambos exigiam algo que ele já não tinha : Energia, vontade, fé.
Desviou o olhar para o chão. Visualizou as Suas próprias sobras. Lixo ao redor, cheiro azedo. Levou a mão ao bolso e encontrou algo esquecido: Um espelho pequeno, de moldura oval. Olhou-se.
O reflexo o assustou.
Viu um homem danificado. Barba sem forma, cabelos sujos, olhos vermelhos como se chorassem há dias, ou décadas. Tentou encontrar o brilho castanho de outros tempos, mas tudo que viu foi opacidade.
Chorou.
Chorou de verdade, como não fazia desde o enterro do pai. Nem mesmo quando sua esposa partiu ele derramara tantas lágrimas. Agora, ali, sozinho entre flores, lixo e fumaça, sentiu o peso da ausência de tudo: Da dignidade, da família, da vontade.
Seu pranto foi um pedido mudo por perdão, não sabia a quem. Talvez a si mesmo.
Quando as lágrimas cessaram, tentou mais uma vez mirar o horizonte.
Os caminhos ainda estavam lá. Um deles brilhava com a luz do sol. Mas ele não se moveu. Sentia-se colado ao banco, preso por raízes invisíveis de resignação.
Voltou os olhos para o chão. Para o cigarro malfeito que ainda guardava calor. Levou-o à boca e reacendeu a chama com mãos trêmulas.
E a fumaça, mais uma vez, envolveu seu rosto e sua alma.
A fumaça ainda dançava no ar, mas seus olhos, agora úmidos, não a acompanhavam mais com o mesmo encanto. Algo havia se quebrado, ou talvez, apenas trincado.
Na praça, as flores continuavam abertas, indiferentes ao drama humano. Os pássaros vinham e iam entre os galhos da mangueira, levando nos bicos pequenos pedaços de folhas, de gravetos e de tempo.
Então, ela apareceu.
Vinha devagar, arrastando uma bolsa surrada e um vestido florido que parecia ter absorvido a luz do dia. Não devia ter mais de quarenta, mas carregava nos olhos um tempo velho, daqueles que só se adquirem em silêncios longos demais.
Parou diante dele sem dizer palavra. Observou o homem com um misto de pena e reconhecimento, como quem enxerga algo familiar em meio ao naufrágio.
— Tem fogo? — perguntou, apontando um cigarro improvisado, igual ao dele.
Ele hesitou. Não por não querer dar o fogo, mas por não saber mais como se relacionar com qualquer coisa que não fosse fumaça ou esquecimento. Ainda assim, ofereceu o isqueiro, tremendo levemente ao estender a mão.
Ela acendeu. Deu uma tragada longa. Ficaram em silêncio.
O tempo entre eles não era constrangido, era apenas suspenso.
— Bonito o céu hoje — disse ela, olhando para cima.
Ele não respondeu. Mas também olhou.
— Você vem sempre aqui? — insistiu, não com curiosidade, mas com cuidado.
— Todo dia. Fumo, penso. Ou tento não pensar — respondeu, com a voz áspera como papel queimado.
— Eu também. Só que hoje… eu tava pensando parar.
Ele a encarou pela primeira vez. Não havia nada de extraordinário nela. Mas também, nada de comum. Havia uma quietude ali. Uma espécie de coragem calma.
— Parar com o quê? — Perguntou.
— Com tudo. A fumaça. A dor. O medo de viver.
Ele não soube o que dizer. Ficou em silêncio. Pensou que talvez não soubesse mais o que era parar.
Ela deu outra tragada, olhou ao redor, e falou com uma leveza que contrastava com o peso das palavras:
— Acho que quando a gente olha demais pra fumaça, esquece como era o ar limpo. E aí começa a pensar que só existe isso.
Ele abaixou os olhos. As palavras tocaram onde doía.
Ela se levantou devagar, ajeitou a alça da bolsa no ombro e, antes de sair, estendeu a mão. Dentro dela, um papel dobrado.
— Isso é um endereço. Um lugar onde dão café, banho e ouvidos. Não precisa ir. Mas se algum dia você cansar da fumaça…
...a gente se encontra por lá.
E foi embora.
Ele ficou imóvel. O cigarro queimava entre os dedos, quase até o filtro. Olhou o papel na mão. Sentiu o peso do momento. Um peso diferente — feito de possibilidade.
Pela primeira vez em muito tempo, não acendeu outro cigarro.
A fumaça, agora, parecia menos importante.
O papel ficou dobrado em sua mão por longos minutos. Ele o encarava como quem olha para uma memória distante, algo que sabe que é real, mas que não consegue tocar sem se ferir.
Quase o deixou cair. Quase o queimou. Quase o esqueceu.
Mas não o fez.
Guardou-o no bolso junto ao fumo e ao isqueiro, e por um momento, não soube mais o que era tesouro e o que era chance.
O dia virou tarde, e a sombra da mangueira se alongou sobre o chão da praça. O homem, pela primeira vez em semanas — ou meses — não reacendeu o cigarro. As mãos tremiam, sim. O corpo exigia a brasa. A droga. Mas algo, lá no fundo, estava diferente.
Ele se levantou. As pernas estranharam o movimento, como se fossem feitas de raízes. Mas aos poucos, respondeu ao comando. Deu alguns passos. Olhou as placas outra vez: bem e mal. Continuavam lá, imóveis. E agora, uma terceira direção — a que levava à rua lateral, fora da metáfora, fora da escolha entre extremos.
E foi por ela que ele seguiu.
Caminhou sem rumo por ruas esquecidas. Passou por lojas fechadas, crianças jogando bola, latas de lixo tombadas, paredes grafitadas com frases que pareciam gritar por sentido. Em uma delas leu:
“Se ainda dói, ainda importa.”
Sentiu um nó na garganta. Continuou.
O endereço no papel o levou a uma casa antiga, com um portão de madeira e um letreiro simples: “Lar das estrelas.”
Respirou fundo. O coração disparou, como se tentasse fugir pela boca. Por um instante, pensou em voltar. Mas já não havia sombra de mangueira para protegê-lo.
Tocou a campainha.
Uma mulher de cabelos grisalhos, rosto sereno e mãos acolhedoras abriu a porta.
— Boa tarde… posso ajudar?
Ele hesitou, depois tirou o papel do bolso e o mostrou, sem dizer palavra. Ela sorriu como quem reconhece a dor.
— Pode entrar. Aqui ninguém pergunta por ontem. Só pergunta se você quer café hoje.
Entrou.
O cheiro era outro. Não havia fumaça, nem álcool, nem lixo. Havia sabão, café quente, pão recém-assado e vozes calmas. Rostos marcados como o dele, mas vivos. Alguns, até esperançosos.
Sentou-se. Aceitou o café. Disse seu nome. Chorou de novo.
Não foi uma redenção repentina. Não há milagres silenciosos. Mas há começos.
Naquela noite, dormiu em uma cama limpa, com lençol gasto, mas macio. O corpo estranhou. A alma agradeceu.
Nos dias que se seguiram, voltou à praça, mas já não carregava o fumo, nem o isqueiro. Levava pão e palavras. Às vezes, levava até companhia.
Nunca mais viu a mulher do vestido florido.
Mas em todos os rostos que chegavam, reconhecia o dela. Não pelos traços, mas pelo gesto: o de estender a mão a quem já quase havia esquecido que era possível respirar sem fumaça.
A vontade de tragar o fumo, não passou. Sempre volta. Mas a esperança de rever a moça de vestido florido também não.
PS, sua opinião é muito importante para o meu trabalho. O que eu quis definir nesse arquivo?
O cigarro, fumaça foram metáforas. Qual o seu sentimento deste conto?